quarta-feira, junho 23

As luzes da ribalta

De volta à blogosfera, não poderia deixar de partilhar a experiência que vivi hoje à hora do lanche.
Desloquei-me à copa da empresa para lavar uma maçã, quando me deparei com uma enorme algazarra: 15 pessoas especadas em frente ao televisor, num estado de concentração absoluta e pouco disponíveis para devolver o meu “boa tarde”.
“Pensava mesmo que Portugal só jogava na sexta”, meditei por momentos. Qual não é o meu espanto quando me informaram que o colega João Paulo estava a ser entrevistado no programa “Vida Nova”, uma espécie de “Tardes da Júlia” à moda da SIC, onde pontifica esse vulto da comunicação que dá pelo nome de Fátima Lopes.
Se não me falha a memória, 24 horas antes o senhor em questão estava a lanchar sozinho na mesa do canto. Hoje, fruto da exposição mediática, tem mais de uma dezena de colegas rejubilando com cada um dos seus gestos e aplaudindo comovidamente as suas palavras. Já para não falar da menina da recepção, que correu apressadamente para levantar a máquina e fotografar a obra “João Paulo + LCD”. São peças de arte que em separado têm pouco valor comercial.
Eu aproveitei a dica e, discretamente, captei uma imagem do circo com a câmara do telemóvel. Talvez imprima o recuerdo e o exiba quando algum dos presentes me responder: “agora não te posso atender porque que estou cheio de trabalho”.
É um facto, as luzes da ribalta iluminam as formas de vida mais sombrias, desde os desejos reprimidos dos adolescentes de Mirandela que contemplam os seios da professora na Playboy, até ao voyerismo dos colaboradores de uma consultora, indivíduos adultos e cinzentões, que assistem em êxtase à participação de um colega num show televisivo.
Aos primeiros, o meu grande “bem haja” por não terem ainda embarcado nas aclamadas “homo-aventuras”; aos segundos, sempre posso sugerir a procura de um trabalho mais estimulante ou de acompanhamento médico especializado.

domingo, janeiro 24

O casamento gay, carta aberta aos deputados da nação

Caros deputados deste país de brandos costumes que tem por hábito terminar o Festival da Eurovisão com menos pontos do que os que tinha antes do seu representante cantar,

No passado dia 17 de Dezembro a Assembleia da República aprovou a lei que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Esta mudança radical no padrão da união conjugal que conhecemos levanta, para além de muita polémica e comentários pouco esclarecidos, algumas dúvidas de cariz operacional que gostaria de ver endereçadas:
- Qual o argumento moral para continuar a proibir um indivíduo de contrair matrimónio com o cadáver da tia ou com um husky siberiano? (tenhamos, como premissa base, que todos os intervenientes expressaram o seu consentimento tácito para o acto)
- As designações Presidente da República e Primeira Dama manter-se-ão inalteradas caso os eleitos (e respectivos companheiros) decidam cantar desnudos o YMCA enquanto jogam à apanhada nos jardins do palácio de Belém?
- Poderão existir casamentos a três? (adoraria ficar eternamente ligado a duas gémeas ninfomaníacas que conheci recentemente na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa)

Agradeço resposta célere às questões que coloco, pois as gémeas querem aproveitar os saldos para comprar os vestidos de noiva.

Antecipadamente grato,


David Rocha

quarta-feira, novembro 11

O swing do sinaleiro

Desengane-se quem, ciente da evolução do mobiliário urbano e da maquinaria de regulação do trânsito automóvel, condenou precipitadamente à extinção a inolvidável figura do polícia sinaleiro.
De facto, constato existir uma franja de distintos reformados que, embebidos do mais nobre espírito cívico e de missão, se empenham em ditar instruções aos mais desatentos condutores.
Rolava apressado para uma reunião matinal, queimando semáforos e sustendo a respiração a cada encontro visual com o relógio quando, num ápice e a 5 metros do meu carro-foguete, surgiu um idoso destemido preparando-se para atravessar a rua.
À minha travagem instintiva e altamente arriscada, seguiu-se (pasmem) um sorriso compreensivo do ancião, acompanhado por um simpático: “passe, passe”.
Aliviado e já de primeira engrenada, percorri os primeiros centímetros da nova marcha... e não é que o cretino mudou de ideias e alçou subitamente a perna para a estrada? A expressão afável transformou-se num bem mais castrador: “alto lá meu diabo do asfalto, estou na passadeira!”.
Sem alternativa, parei consternado, aguardando que o velho percorresse em marcha lenta os metros que o separavam do passeio seguinte.
Uma vez mais dá-se o volte-face, e uma figura abnegada acompanhada de gesticulação condizente incitou-me novamente a avançar.
Sem apelo nem agravo arranquei destemido, desta vez decidido a varrer qualquer ser ou objecto que se atrevesse a fazer parede*.
Surpreendido por este movimento agressivo e envolto em CO2, o artolas ainda soltou por entre uma tosse seca: “assasino! Esta malta nova não tem respeito por quem lhes mudou as fraldas!”.
Já distante, observei pelo retrovisor a aproximação de outra viatura ao palco dos acontecimentos relatados... “Prepara-te velho ginasta, vai recomeçar o exercício”, sussurrei em surdina.


* Constitui uma grande vantagem ser usufrutuário de um carro da companhia que já teve outro dono. Quando me perguntarem pelas manchas de sangue no capot, basta dizer: “já lá estavam”.

domingo, julho 26

Pós-graduação em gestão de conflitos

Instalar o pacote cabo e transferir o sistema de aquecimento para gás da companhia são, isoladamente, os dois maiores problemas que cada indivíduo tem de enfrentar no interior da sua habitação*.
Quando estes dramas se cruzam cronologicamente e à ZON é comissionada a tríada de serviços amaldiçoados – televisão, internet e telefone – as probabilidades de sucesso são consideravelmente inferiores às de encontrar o nariz do Michael Jackson em bom estado.
Alistado nestas múltiplas frentes de conflito, começo a sofrer os danos colaterais desta guerra fratricida.
Tomar banho de água fria, conviver com quebras de telefone sucessivas e downloads interrompidos a cada meia hora são torturas que enfurecem o mais pacato dos pacifistas. Se a isto juntarmos alta definição de qualidade duvidosa e cortes de sinal frequentes, o caldo está entornado para décadas de conflito.


* excluindo, porventura, o contacto íntimo com Josef Fritzl.

domingo, junho 7

Europeias 2009

Comovido com o apelo do Presidente da República à participação cívica dos eleitores neste acto de 7 de Junho, suspendi o ataque aos caracóis e dirigi-me ao local habitual de voto.
Cumprimentei discretamente a equipa de serviço que me esperava numa sala refundida da escola primária n.º 2 da Cova da Piedade. Esta retribuiu, berrando o meu nome a plenos pulmões e registando a minha presença no caderno eleitoral.
Segui depois para a cabine de voto, local solene revestido a acrílico azul, decorado com uma bic centenária que aguardava o meu juízo sábio.
Olhei cuidadosamente para o boletim, onde treze partidos se perfilavam por ordem alfabética tentando captar a minha simpatia. Meditei um pouco, procurando conotá-los com alguma ideia ou projecto europeu. Um esforço meritório, sobretudo após uma campanha eleitoral tão esclarecedora e onde as quezílias da política interna foram sempre deixadas à margem...
Dobrei o papel em quatro e retrocedi à urna. Sem delongas, deixei deslizar a minha contribuição democrática pela ranhura, perante o olhar sorridente dos vogais da mesa.
O simbolismo do acto lembrou-me que cumpri uma vez mais o meu dever. O eco de uma caixa vazia e o brilho de um domingo soalheiro sugerem-me que terei sido um dos poucos a fazê-lo.

domingo, abril 19

À boleia da tragédia

A recente fatalidade que afectou o coração de Itália, um terramoto de graves repercussões políticas, sociais e humanas, não deixou o mundo indiferente.
Dias após a tragédia, ocorreu também um sismo na Moita, terra de tradições tauromáquicas onde, pasme-se, a magnitude da “catástrofe” ascendeu aos 2,5 pontos na escala de magnitudes de Richter. Estou certo de que, na arena, os touros já foram capazes de bem mais, sem alarido ou danos dignos de registo.
Entrevistados todos os habitantes da área “afectada”, mesmo aqueles que nada tinham presenciado, pasmei com o comentário sincero de uma jovem à pergunta “o que sentiu?”. Gracejada por um sorriso aberto, retorquiu: “senti-me em Itália”.
Ora aí está uma forma bem económica de viajar e de promover um país além fronteiras. Em linha com este pensamento, proponho que doravante qualquer colapso de estruturas de atravessamento seja designado "souvenir de Entre-os-Rios".

domingo, abril 5

“Não satisfaz”

Aparentemente, a célebre interrogação “quis custodiet ipsos custodes?” já tem reposta para os professores. O processo de avaliação avança e esta classe de ociosos começa, como todas as outras onde foram retiradas regalias ou imposto trabalho, no mais genuíno pranto à portuguesa. Este caracteriza-se por manifestações inflamadas e co-participadas pelos sindicatos. Discurso irado e palavras de ordem envolvendo as memórias de Abril são igualmente comuns e desejáveis ao folclore.
Parece mesmo ter chegado a propalada era da exigência e do rigor, conceitos que, honestamente, estava longe de ver conotados com o partido socialista.
É certo, o ser humano é preguiçoso e pouco dado à mudança. Não sou eu quem o diz, é a primeira lei da Física*. Infelizmente, o único modo de galgar as etapas do progresso é ao som estridente do chicote e sob a brasa do maçarico.
Assim seja, doa a quem doer.


* Todo o corpo permanece no seu estado de repouso, ou de movimento uniforme rectilíneo, a não ser que seja compelido a mudar esse estado devido à acção de forças aplicadas.